Publicação acadêmica: abrindo o registro da Ciência

O acesso eficiente ao registro da ciência – para autores e leitores – é essencial para a ciência e a sociedade. Entretanto, até que ponto os sistemas contemporâneos de publicação científica e acadêmica atendem às necessidades dos pesquisadores, do público e dos desafios da própria ciência?

Relatório intitulado Abrindo o registro da ciência: fazendo um trabalho de publicação acadêmica para a ciência na era digital (em inglês Opening the record of science: making scholarly publishing work for science in the digital era) do International Science Council (ISC) examina o panorama atual da publicação acadêmica, explora as tendências futuras e propõe sete princípios para a publicação científica e acadêmica [1].

Dirigido à comunidade científica e suas instituições o Relatório busca estabelecer uma visão compartilhada dos princípios e prioridades do sistema de publicação científica. Ele propõe uma série de princípios normativos que devem fundamentar o funcionamento da publicação científica e acadêmica; descreve o panorama editorial atual e sua trajetória de evolução; analisa em que medida os princípios são observados na prática; e identifica questões problemáticas que precisam ser abordadas na realização desses princípios.

Esta é uma tradução livre da matéria publicada pelo ISC sobre o Relatório do projeto em andamento do ISC sobre The Future of Scientific Publishing . Ele foi preparado como um documento de discussão em consulta com um grupo de trabalho internacional e se beneficiou de uma revisão externa de especialistas e de extensas consultas com representantes dos membros do ISC . O relatório será usado para definir a agenda para uma fase subsequente de discussão e ação envolvendo os membros do ISC e outras partes interessadas.

Princípios da publicação científica

I. O acesso aberto e universal ao registro da ciência deve ser garantido, tanto para autores como para leitores.
II. As publicações científicas devem ter licenças abertas que permitam a reutilização e texto e dados
mineração.
III. A revisão rigorosa e contínua por pares é essencial para a integridade do registro da ciência.
IV. Os dados / observações subjacentes a uma publicação devem ser publicados simultaneamente.
V. O registro da ciência deve ser mantido para garantir o acesso aberto às gerações futuras.
VI. As tradições de publicação de diferentes disciplinas devem ser respeitadas.
VII. Os sistemas devem se adaptar a novas oportunidades, em vez de incorporar infraestruturas inflexíveis.

Segundo os autores do Relatório, à medida que o esforço científico se expandiu e se diversificou no final do século 20, as grandes editoras (publishers) progressivamente substituíram, com algumas exceções, o papel das sociedades científicas em publicação científica ao entrar no mercado em grande escala, passando a dominá-lo cada vez mais e elevando progressivamente os preços de acesso às publicações a taxas superiores à inflação.

É improvável que as taxas de processamento de artigos resolvam muitos dos problemas do atual sistema e podem até consolidar o controle comercial sobre o mercado editorial. Problemas de acessibilidade, o lapso de tempo entre o envio e a publicação, bem como as oportunidades oferecidas pela internet estimularam um espectro muito mais rico de modos de disseminação além das revistas ou livros tradicionais.

Uma inovação cada vez mais importante e oportuna são os repositórios que disponibilizam “pre-prints” antes da revisão por pares, envolvendo cada vez mais sociedades eruditas e repositórios universitários como parte do esforço para expandir o acesso para ambos: especialistas e o público. Eles aumentam a taxa de disseminação de novas descobertas, incrementando assim a interatividade entre os pesquisadores e fornecendo evidências precoces, enquanto as revistas passam a funcionar como ‘periódicos de sobreposição’, oferecendo um serviço de revisão por pares para preprints.

Na América Latina, em particular, desenvolveram-se infraestruturas de publicação financiadas publicamente e lideradas por acadêmicos, como repositórios eficientes sem fins lucrativos, que fornecem sistemas holísticos de acesso aberto para a comunicação acadêmica.

Ao mesmo tempo, os regimes de “publicar ou perecer” nas universidades criou uma enorme demanda global por publicação, que gerou os chamados “periódicos e editores predatórios”, que oferecem publicação online rápida, mas com padrões de publicação baixos e pouca ou nenhuma revisão por pares.

Publicando os dados da Ciência

As observações e experimentos que revelam novos insights sobre a realidade são elementos científicos de primeira classe, uma vez que são resultados e partes essenciais do registro da ciência. Eles devem ser creditados como tal.

Além disso, os dados que sustentam os resultados da pesquisa publicada devem ser acessíveis, atendendo aos princípios ‘FAIR’ (Localizável-Acessível-Interoperável-Reutilizável), de modo que a lógica de ligação entre argumento e evidência possa ser examinada e a observação ou experimento possam ser replicados como partes essenciais do processo de autocorreção científica.

Um processo de ‘publicação binária’ é defendido, pelo qual, quando os dados são numerosos demais para serem contidos na declaração de “verdade publicada”, os dados devem ser “publicados” simultaneamente em um repositório confiável para que haja caminhos para acesso por parte de revisores e leitores. Protocolos devem ser desenvolvidos por meio dos quais tais publicações são consideradas pelo menos equivalentes em valor ao artigo tradicional, com periódicos exigindo evidências e dados relacionados a serem disponibilizados como condição de publicação, uma abordagem que poderia ser um poderoso incentivo para o compartilhamento aberto de dados. Há também uma tendência geral de abrir o acesso a dados que fazem parte da pesquisa, mas que não foram necessariamente usados ​​em um artigo publicado.

A menos que o hábito e os meios sejam desenvolvidos para tornar os dados científicos abertos e rotineiramente disponíveis e interoperáveis, a oportunidade para coletar e integrar dados de uma variedade de fontes disciplinares para chegar ao cerne da complexidade de muitos dos principais problemas que a humanidade enfrenta e aos quais a ciência pode dar uma contribuição vital, poderá ser perdida.

O gerenciamento de grandes volumes de dados e seus fluxos pode ser uma tarefa onerosa. Um desafio importante é incorporar o gerenciamento de dados de modo eficiente e seguindo procedimentos FAIR, incorporando-os como funcionalidades normais do ciclo de pesquisa, como responsabilidade e custo do fazer científico na era digital, em vez de como um complemento opcional.

Barreiras para abrir o acesso

Há uma série de questões-chave que impedem a criação, acesso e uso do registro da Ciência.

Avaliações e incentivos

O uso de índices bibliométricos como o fator de impacto de periódicos, como métrica proxy para o desempenho dos pesquisadores é um índice de avaliação conveniente, mas profundamente falho, que leva a uma importante distorção da avaliação e empoderamento do mercado de publicação de periódicos. Há uma necessidade urgente de reforma.

Revisão por pares

A revisão por pares está atualmente sob estresse considerável devido ao grande volume de demanda, de tal forma que um incentivo ou recompensa para realizar a tarefa é necessário. A forma como os pares realizam a revisão está relacionada à crescente importância dos pré-prints, especialmente em tempos de crise, quando existe uma demanda por acesso rápido ao trabalho que ainda não foi revisto. Esta é uma questão premente.

Direito autoral

A transferência de direitos autorais para editores como condição de publicação é uma prática regressiva, particularmente quando envolve a privatização de resultados de pesquisas com financiamento público, e onde partes do registro da ciência são negados, por paywalls altos, para uso pelas próprias pessoas que os geraram.

Indexação

Os índices de trabalhos publicados são importantes para sinalizar a existência de conhecimento científico relevante. Muitos destes sistemas de indexação são de propriedade de editoras comerciais que tendem a favorecer seus próprios periódicos, sendo, em geral, relutantes em adicionar novos editores. Isso prejudica particularmente as empresas editoras de fora da Europa e América do Norte, onde todos os editores de “alto impacto” estão localizados, enquanto pesquisadores do ‘Sul Global’ não têm acesso a tais publicações e periódicos dessas regiões.

Custos e Preços

A revolução digital reduziu os preços na maioria dos setores público e privado, mas não em grandes partes do setor de publicação científica. Os altos preços cobrados para acesso a periódicos de alto impacto, seja para autores ou leitores, discrimina muitos leitores ou pesquisadores, instituições e particularmente aqueles países de baixa e média renda, com base na capacidade de pagamento. Embora os editores relutem em divulgar seus custos, há evidências de que os preços de muitos periódicos são de uma magnitude maior do que os custos necessários, mesmo para periódicos de alto impacto com altas taxas de rejeição.

Ciência em um mundo de mudanças

Há grandes tendências na ciência e na sociedade que criam um contexto vital para a publicação científica. O valor da ciência para as economias nacionais e no enfrentamento dos desafios globais exige processos mais eficientes de disseminação do conhecimento. A era do big data science permite lidar com a complexidade inerente a tais desafios de maneiras sem precedentes, mas requer acesso e publicação de dados como uma norma de investigação científica. A web tem democratizado a informação, criando oportunidades para a divulgação de conhecimento e problemas em lidar com vastas redes de desinformação. Essas tendências sublinham a necessidade fundamental de que a publicação científica se desenvolva de forma a facilitar a cooperação global; garantir que a riqueza de diversas perspectivas globais seja aproveitada para desenvolver soluções globais; criar acesso imediato ao registro da ciência e seus dados para permitir a compreensão mais profunda da complexidade; possibilitar o acesso aberto ao registro da ciência para os cidadãos e outras partes interessadas, particularmente em áreas de interesse público contemporâneo; e garantir que uma voz científica seja eficaz no combate à “infodemia” global da desinformação.

O movimento para uma nova era de ciência aberta é visto por muitos como um meio de alcançar tais objetivos, poderosamente ilustrados na resposta científica global à pandemia COVID-19, embora seja um movimento que não deixa de ter críticos.

Explorando o potencial digital

Todas as disciplinas, com uso intensivo de dados ou não, operam em um mundo digital onde todos os elementos dos processos de pesquisa são conectados ou conectáveis ​​de maneira que permitem que sejam interligados como partes de um fluxo de trabalho de pesquisa, com a possibilidade de interoperabilidade digital em toda o ciclo’. Estas infraestruturas digitais interligadas também fornecem informações sobre o processo de pesquisa que pode ajudar na gestão e avaliação de pesquisas de pesquisadores, universidades e financiadores.

Abrindo o Registro da Ciência

As principais editoras comerciais estão se movendo para monetizar o ciclo de pesquisa, fornecendo avaliações e ferramentas de gestão para instituições e financiadores, dando-lhes assim o potencial para desenvolver uma posição dominante no sistema de pesquisa e para criar plataformas de conhecimento da ciência análogas a outras plataformas digitais que atualmente preocupam os reguladores antitruste. A governança de tais sistemas deve estar nas mãos de empresas privadas, ou as plataformas devem ser governadas de dentro da comunidade científica e suas instituições para proteger o interesse público e aqueles que procuram entregá-lo? A mudança de direção deve ser rápida e quaisquer opções alternativas devem ser realizadas com urgência.

Sumário da Avaliação

A análise acima leva a uma avaliação da extensão em que o sistema atual atende aos interesses da ciência, conforme refletido nos princípios estabelecidos e identifica as seguintes necessidades de reforma:

I. Muitos modelos de negócios inibem o acesso ao registro da ciência por pesquisadores e / ou pelo público, e exclui autores de instituições mal financiadas e de países de baixa e média renda.
II. A transferência de direitos autorais para editores inibe o acesso ao registro da ciência, reduzindo seu potencial de reutilizar ou explorar o conhecimento que contém ou em resposta a emergências.
III. A revisão por pares precisa se adaptar a volumes crescentes de trabalho, a diversos modos de publicação de trabalhos científicos e às demandas de acesso rápido ao conhecimento emergente.
IV. Os dados / observações subjacentes aos resultados de pesquisa publicados devem ser simultaneamente publicados, com necessidade de procedimentos normativos como pré-requisitos para publicação.
V. O futuro desenvolvimento, federação e interoperação de bibliotecas digitais, regido pelo interesse público global, são prioridades importantes para o registro em longo prazo da ciência.
VI. É necessária uma reflexão sobre as normas e prioridades de acesso aberto para distintas disciplinas e como elas podem ser melhor ministradas, ao mesmo tempo que facilitam a publicação interdisciplinar.
VII. Os potenciais da revolução digital para a publicação científica não foram totalmente exploradas, e estão se movendo em direção a plataformas monopolísticas ameaçam a inovação e o bem público.

Prioridades de Ação

O sistema atual de publicação científica e acadêmica é uma “economia mista” de fins lucrativos e operações sem fins lucrativos, envolvendo diversos órgãos comerciais do setor privado, publicamente sistemas financiados e com base institucional, sociedade instruída e operações independentes. Nós esperamos que essa mistura seja mantida, enquanto defendemos que deve haver uma visão compartilhada de propósito de servir ao bem público global, aderindo aos Princípios I-VII.

O mercado precisa de reformas, de forma a aumentar a eficiência e evitar o comportamento monopolista por meio de uma relação mais racional entre seus clientes (comunidade científica) e fornecedores. As oportunidades oferecidas pela revolução digital devem ser aproveitadas, o que envolve questionamento de algumas das suposições que fundamentam um sistema que ainda é baseado em normas da era da impressão e do papel. A governança do sistema deve estar principalmente nas mãos da comunidade científica e suas instituições, em vez das de empresas privadas. O ISC vai trabalhar com seus membros, academias nacionais, sindicatos e associações científicas internacionais, bem como outros órgãos científicos regionais e nacionais e editores para buscar soluções que tratem os principais problemas de publicação científica e acadêmica identificados por este relatório.

== REFERÊNCIA ==

[1] INTERNATIONAL SCIENCE COUNCIL. Opening the record of science: making scholarly publishing work for science in the digital era. Paris, France. International Science Council, 2021 DOI: https://doi.org/10.24948/2021.01